quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

A prostituta, o autarca e a corrupção à sua volta

Só olha para o umbigo, não olha para a realidade; é feito "para os amigos"; é "intelectual" e autorista, não sabe contar histórias e não fala dos problemas do País, das pessoas comuns e da actualidade. Estas são algumas das queixas constantemente atiradas ao cinema português, e por vezes com razão. Mas convém que quem as faz, sobretudo sem ir ao cinema para as fundamentar, vá ver Call Girl, de António-Pedro Vasconcelos, para perceber que os filmes portugueses já não são só redutíveis às suas queixinhas.

Partindo de um enredo que o cinema glosa regularmente, o do homem mais velho seduzido e arrasado por uma mulher fatal - no caso, Carlos Meireles, um autarca-modelo alentejano (Nicolau Breyner) e Maria, uma prostituta de luxo (Soraia Chaves) -, Vasconcelos e o argumentista Tiago Santos fizeram um filme que capta, como nenhum outro desde o 25 de Abril, o "espírito do tempo" que se vive em Portugal.

O que Call Girl diz é o que o espectador já sabe e repete nas conversas quotidianas: o País está a saque, está tudo à venda, todos têm um preço, vale tudo na selva social em que vivemos. A história da personagem principal é a ilustração disto, tornada interessante, aliciante, verosímil, pela forma como o realizador a dilui no pano de fundo de falência moral e de degradação geral de princípios e valores.

O facto de Meireles ser um autarca associado ao PCP reforça ainda mais o clima de descalabro colectivo nacional que Call Girl descreve, e que vai do Governo e dos grandes interesses económicos até aos que fazem sozinhos pela vida, como Maria, a call girl que "prefere ser infeliz num Audi a feliz num banco de autocarro".

Embora não se restrinja ao meio do futebol, Call Girl marca pontos onde Corrupção não conseguiu, nomeadamente dando forma narrativa e dramática convincente a uma história íntima de contornos policiais, que se joga num cenário maior de implicações políticas, morais, económicas e sociais, até uma conclusão inelutavelmente amoral. Tudo tornado verídico, tangível e credível por personagens bem construídas, diálogos sacados ao discurso comum, ambientes reconhecíveis e situações identificáveis, um mundo devolvido ao espectador como que num espelho em que este se reconhece, e ao que o rodeia.

Exímio a pôr a conviver nos seus elencos actores de várias gerações, escolas e origens, António-Pedro Vasconcelos atinge o auge em Call Girl, onde é da mais elementar justiça destacar Ivo Canelas no polícia "tarantinesco". Mas também Soraia Chaves.

Sim, ela é um símbolo sexual, sim, ela fotografa magnificamente com roupa justa ou os trajes de "trabalho" da personagem. Mas é também uma actriz dedicada, que não se deixa intimidar pelos talentos à sua volta, que torna sua a personagem de Maria e nos conquista com ela. Reduzir Soraia Chaves à beleza e aos dotes físicos com que a natureza a premiou é tão injusto como dizer que o cinema português não consegue tirar a cabeça do umbigo e olhar para a realidade.

in, Eurico de Barros